Cenário incerto faz usinas a carvão saírem da gaveta

A decisão do governo de incluir projetos de usinas alimentadas a carvão mineral no próximo leilão de energia levou os empresários do setor a revisar detalhes de seus projetos. O redesenho cirúrgico de cada proposta tem a missão de garantir o sucesso no leilão das questionadas usinas térmicas, empreendimentos que estão na gaveta há quase quatro anos, por conta da fatura pesada que impõem ao meio ambiente. O chamado "leilão A-5", em que o governo contratará parte da geração de energia que irá abastecer o país daqui a cinco anos, está previsto para acontecer entre setembro e novembro. Os investidores do carvão já fizeram suas contas. A previsão é de que cerca de R$ 10 bilhões em negócios sejam gerados a partir da construção de três usinas térmicas. Apesar de serem crucificadas pela alta geração de gás carbônico (CO2) que lançam no ar, essas térmicas já cumpriram todo o ritual do licenciamento ambiental e hoje têm autorização para entrarem em operação. Elas não foram construídas até hoje, porém, porque o governo não realiza nenhum leilão para térmicas de carvão desde 2008. Essa postura está prestes a mudar. Há 1,7 mil megawatts (MW) de geração baseada em carvão apta a entrar no leilão deste ano, segundo a Associação Brasileira de Carvão Mineral (ABCM). A perspectiva de investimento é de R$ 6 mil por cada kilowatt que será gerado, um negócio bilionário acompanhado com lupa pelo empresário Eike Batista. O dono da MPX Energia, empresa controlada pelo grupo EBX, tem dois projetos no Rio Grande do Sul prontos para entrar no leilão. A geração a partir do município gaúcho de Candiota prevê um total de 1.327 MW de energia. Segundo a MPX, "a inclusão de carvão mineral nos leilões de energia é bastante positiva" e a empresa "estuda sua participação no leilão". Sobre os impactos ao meio ambiente, a MPX sustenta que seus projetos usam "tecnologias modernas de controle ambiental, possibilitando uma maior redução dos níveis de emissões de gases na atmosfera, além do que exige a legislação brasileira". Eike não está sozinho. Os empresários da Usina Termelétrica Sul Catarinense (Usitesc), projeto com capacidade de 440 MW, também querem entrar na disputa. Kaioá Gomes, diretor-geral da empresa, diz que o empreendimento avaliado em R$ 1,6 bilhão pode gerar cerca de 5 mil empregos, entre diretos e indiretos. "Realmente estamos com uma expectativa muito grande com esse leilão. É um momento primordial do setor", comenta. Independente de controvérsias ambientais, a questão que se coloca sobre a atitude de abrir espaço para essas usinas em leilão - decisão lastreada na necessária busca de segurança energética do país - é o prazo necessário para que as térmicas fiquem prontas e entrem, efetivamente, em operação. O problema de geração é atual e foi evidenciado pela escassez de chuvas e as limitações dos reservatórios das hidrelétricas. A solução desse problema, no entanto, não é imediata. O Brasil ficou quase quatro anos sem contratar projetos de térmicas a carvão. Isso custou o esfacelamento da indústria nacional do setor. Hoje, 70% dos componentes usados para erguer uma térmica a carvão têm que vir de fora do país, segundo cálculos da ABCM. Além disso, não se constrói uma usina dessas do dia para a noite. São pelo menos três a quatro anos de trabalho. "Não tem como ser diferente. Isso é resultado de uma decisão política, que não incentivou a produção nacional", diz Luiz Fernando Zancan, presidente da ABCM. A ampliação da geração de energia no Brasil se baseia em leilões feitos para contratar a chamada "energia nova". Nesses leilões, o governo garante a compra da energia futura de empreendimentos e, assim, dá segurança aos investidores para que toquem seus projetos adiante. Isso explica porque as térmicas a carvão têm sinal verde para serem construídas, mas não saiam do papel porque não tinham segurança sobre a venda dessa geração. Hoje, a capacidade instalada das usinas térmicas a carvão do país é de 3.205 MW, geração que tem sido utilizada a plena carga. Na matriz energética, isso equivale a apenas 2,5% da geração nacional. Se fossem mantidas as projeções do governo feitas até o ano passado, essa média cairia para 1,8% de participação, dado o crescimento projetado de outras outro. O cenário, no entanto, tende a mudar, caso as usinas térmicas realmente tenham sucesso no leilão do segundo semestre. Pesa a favor desses projetos o fato de que, até agora, não há previsão de que grandes projetos de hidrelétricas entrem na disputa, o que poderia fazer despencar o preço a ser contratado pelo governo. Os empresários preveem uma disputa forte com pequenas centrais hidrelétricas - as chamadas PCHs, que geram até 30 MW -, além de usinas de biomassa e gás. Quanto às eólicas, discute-se a possibilidade dessas terem um leilão exclusivo. Na semana passada, o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, falou publicamente sobre o plano do governo em realizar o leilão com as térmicas no segundo semestre. Procurado pelo Valor, não quis comentar o assunto. A Empresa de Pesquisa Energética também não se pronunciou. Ontem, a cúpula da área de energia do governo convocou a imprensa em Brasília para dizer que o país não corre risco de racionamento nos próximos anos. Hoje, 68,9% da geração total do país (121,8 mil MW) está baseada em hidrelétricas. Até 2021, projeta-se que essa participação caia para 65,1%. ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ Ambientalista critica decisão e defende outras opções. A inclusão das térmicas a carvão em novos leilões de energia é o início de um pesadelo ambiental para muitas organizações ligadas ao meio ambiente, as quais já davam o assunto como caso encerrado. A perspectiva de crescimento das chamadas energias renováveis - usinas hidrelétricas, eólicas e de biomassa - afastariam de vez a aposta em projetos criticados por serem poluentes, sepultando de vez as térmicas movidas a carvão mineral, óleo combustível, gás e energia nuclear. O governo, no entanto, já deixou claro que não abrirá mão dessas fontes para garantir a geração do país e afastar qualquer possibilidade de racionamento de energia. "Vemos essa decisão com muita preocupação. Era o momento de abandonar isso. O carvão brasileiro é de péssima qualidade, gera altíssimo grau poluente, além de ser muito caro", diz o especialista Carlos Rittl, coordenador do programa mudanças climáticas e energia da organização World Wide Fund for Nature (WWF) no Brasil. Nas entrelinhas, a decisão do governo de retomar as térmicas carrega outros significados. Nos últimos anos, a construção de grandes hidrelétricas na Amazônia - como Jirau (RO), Santo Antônio (RO) e Belo Monte (PA) - só foi para frente após o governo alterar esses projetos para que tivessem impacto "reduzido", utilizando turbinas baseadas em "fio d'água", sistema que aproveita o fluxo natural do rio para gerar energia, dispensando a necessidade de construir grandes reservatórios. Por diversas vezes, o governo já lamentou ter que adotar essa alternativa para viabilizar as hidrelétricas. Agora, para alguns especialistas do setor, a retomada das térmicas soa como uma "resposta" para esse caminho escolhido pelo país. A leitura é mais ou menos assim: não querem os grandes reservatórios? Então, agora, aguentem as térmicas. Com o retorno das térmicas à matriz energética, volta à mesa de discussão a possibilidade de se construir usinas com reservatórios maiores. Para Carlos Rittl, da WWF, é uma visão equivocada. "Temos os projetos de eólicas, biomassa e solar mostrando bons resultados. Todas as fontes geram algum impacto, mas se forem implantadas de forma adequada, com planejamento, esse impacto é reduzido", comenta Rittl. "Não se trata de ser contra usina hidrelétrica, por princípio, mas é preciso que haja uma análise integrada desses projetos. Acredito que escolhas melhores podem ser feitas. Falta diálogo." Na Conferência de Copenhague, o governo brasileiro assumiu o compromisso de que suas emissões de CO2 não poderão ultrapassar 680 milhões de toneladas até 2020. Segundo a Associação Brasileira de Carvão Mineral (ABCM), o acionamento de novas térmicas no país não compromete essa meta. "O Plano Decenal de Energia aponta que o país vai gerar 622 milhões de toneladas até 2020. Se esses projetos entrarem em operação, estamos falando só de 10 milhões de toneladas a mais. Temos, portanto, uma gordura de 48 milhões de toneladas pela frente", diz Luiz Fernando Zancan, presidente da ABCM. A MPX Energia, de Eike Batista, diz que tem investido pesado para reduzir o impacto de seus projetos. A Usina Termelétrica Sul Catarinense (Usitesc) estima que 25% do investimento de R$ 1,6 bilhão que fará será empregado em ações para mitigar o impacto ambiental. Projeta-se reaproveitamento de rejeitos para tapar minas e até uso de cinzas para recuperação de solos com baixo teor de nutrientes. "É lamentável ver que o país segue na contramão de um movimento global. A Índia, por exemplo, investe hoje 100 vezes mais que o Brasil em energia solar. Em 2011, nós gastamos US$ 50 milhões nesses projetos. Os indianos colocaram US$ 5 bilhões na energia solar", diz Carlos Rittl, do WWF Brasil. (André Borges)