Xisto muda geopolítica da energia

América do Norte será autossuficiente em energia até 2020. Há uma "revolução do xisto" em curso nos Estados Unidos: ela já despertou investimentos de US$ 100 bilhões na indústria americana, derrubou as tarifas do gás e promoveu a abertura de um milhão de postos de trabalho em meio à maior crise econômica do país desde 1929. E essa "revolução" tende a culminar em uma nova geopolítica do petróleo: com um aumento contínuo de sua produção, a América do Norte deverá alcançar sua independência energética, em aproximadamente uma década. "Seremos exportadores e importadores ao mesmo tempo, mas o resultado líquido poderá ser zero", disse ao Valor o secretário de Energia dos EUA, Ernest Moniz. Na sexta-feira, após um almoço com dezenas de empresários na sede da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e de reuniões com autoridades brasileiras, ele fez um relato detalhado das transformações energéticas em andamento no país que mais consome combustíveis fósseis no planeta. Com a exploração de recursos não convencionais, o preço do gás natural está hoje em US$ 3,50 por milhão de BTU, menos da metade do que valia uma década atrás. Antigas usinas térmicas movidas a carvão, um insumo caro e poluente, estão sendo progressivamente substituídas por novas plantas que usam gás natural. E a indústria petroquímica vive um período de crescimento com a oferta de matérias-primas associadas ao gás de xisto. Leia abaixo os principais pontos da entrevista concedida pelo secretário americano ao Valor: Valor: Qual tem sido o peso do gás de xisto no esforço do governo americano em recuperar a economia dos Estados Unidos? Ernest Moniz: O gás de xisto tem tido um impacto enorme na economia, no mix energético e no desempenho ambiental dos Estados Unidos. Os preços do gás natural despencaram para US$ 3,50 por milhão de BTU, o que é metade ou até menos da metade de dez anos atrás, no Henry Hub . Essa queda de preços tem implicações enormes - deixe-me falar antes das ambientais. O presidente Obama apresentou uma meta de reduzir as emissões de gases-estufa em 17% até 2020, com base nas emissões de 2005, e já atingimos metade dessa meta. Da redução obtida até agora, cerca de 50% foram graças ao uso do gás de xisto no setor elétrico. Isso não ocorreu por causa de políticas públicas, mas pela dinâmica do mercado. Com o gás natural a esse preço, fica mais barato usá-lo como insumo em modernas usinas térmicas, o que gerou uma substituição de antigas termelétricas movidas a carvão. Valor: Na indústria, quais foram os reflexos mais diretos? Moniz: Temos uma estimativa de que US$ 100 bilhões foram investidos em nova capacidade industrial, nos últimos cinco ou seis anos, devido à revolução do gás de xisto. Sem falar no que consumidores de gás residencial estão economizando diretamente por causa dos preços menores, por exemplo, para o aquecimento das casas. A nossa projeção é que um milhão de empregos, diretos e indiretos, foram criados com essa revolução do xisto. Os custos de energia caíram para qualquer indústria manufatureira. Mas outra questão importante, perdoe-me pelo tecnicismo, é a riqueza criada com o chamado "wet gas". "O gás de xisto tem tido um impacto enorme na economia, no mix energético e no desempenho ambiental dos Estados Unidos" Valor: O que é isso exatamente? Moniz: Há uma série de líquidos associados à extração do gás natural, como o propeno, o butano e o etano. Eles são indexados aos preços do petróleo e, portanto, valem mais do que o próprio gás. Explico: um barril de petróleo tem o equivalente a seis milhões de BTUs . Quando dizemos que o milhão de BTU vale US$ 3,50, você multiplica esse valor por seis e tem US$ 21 por "barril" de gás. Ocorre que o petróleo custa US$ 100. Então, esses líquidos são cotados a um preço cinco vezes maior do que o gás ao qual estão associados. O propeno é uma commodity em si mesma. Mas veja o que ocorre com o etano. Ele é matéria-prima do etileno. E com o etileno você faz plástico. Então, o gás de xisto tem gerado insumos para impulsionar diretamente a indústria petroquímica. Temos visto novas plantas sendo construídas para usar esses insumos . Valor: A exploração de reservas de gás e petróleo não convencionais permitirá aos Estados Unidos entrarem na lista de exportadores? Moniz: Ainda somos importadores líquidos de petróleo e de gás. No caso do gás, ainda compramos alguma coisa do Canadá, mas isso mudará em poucos anos. No caso do petróleo, aumentamos a produção em cada um dos últimos quatro anos e as nossas importações estão no menor nível em muito tempo. O primeiro impacto disso é no balanço de pagamentos. Há alguns anos gastávamos US$ 1 bilhão por dia nas importações de petróleo. Isso diminuiu em centenas de milhões de dólares. É uma excelente notícia para a economia americana. Valor: Os Estados Unidos também se tornarão autossuficientes em petróleo? Se isso for confirmado, obviamente terá implicações geopolíticas importantes... Moniz: A Agência Internacional de Energia prevê que seremos os maiores produtores globais de petróleo em 2020. Hoje em dia a Rússia, com pouco mais de 10 milhões de barris por dia, é a maior produtora. A Arábia Saudita caiu abaixo desse patamar recentemente. Somos os terceiros do mundo neste momento. Mesmo se chegarmos a 10 ou 11 milhões de barris por dia em 2020, talvez ainda estaremos importando algum petróleo, mas é importante notar de onde ele virá. Os nossos maiores fornecedores serão o Canadá e o México. Então, a ideia de uma independência energética da América do Norte, genericamente falando, não é nenhuma loucura. Em um prazo de uma década, ela é possível. Seremos exportadores e importadores ao mesmo tempo, mas o resultado líquido poderá ser zero. Valor: Diante da desaceleração chinesa e do novo cenário energético dos Estados Unidos, qual é o cenário para os preços do petróleo? Moniz: Quem já se atreveu a prever um cenário de preços para o petróleo nos dez anos seguintes acabou se mostrando tolo. Os preços podem disparar e recuar, sem uma dinâmica clara. Daqui a dez anos, não dá para saber se a demanda global estará em 80, em 90 ou em 100 milhões de barris de petróleo por dia. Isso faz uma enorme diferença para o mercado e para os preços. Valor: Por que não é possível fazer essa estimativa para a demanda de petróleo? Moniz: Veja o nosso caso. Somos os maiores consumidores de petróleo do mundo e há três fatores que se somam para reduzir o uso de combustíveis fósseis nos Estados Unidos. No ano passado, o presidente Obama negociou novos padrões de eficiência energética com as montadoras. Até 2024, haverá a necessidade de fazer 54 milhas por galão de gasolina , o dobro do índice de eficiência atual. Em segundo lugar, a produção de biocombustíveis passou por solavancos ultimamente, mas continua a avançar. Em terceiro lugar, há o avanço dos carros elétricos. Neste ano, pela primeira vez, talvez alcancemos o patamar de 100 mil veículos elétricos vendidos no mercado americano. Ainda é um número pequeno. Foram 40 mil no primeiro semestre, o dobro do mesmo período do ano passado, mas é um crescimento muito rápido. Mesmo nos Estados Unidos, os carros elétricos ainda são muito caros, custam US$ 80 mil. Precisamos de uma redução dos custos da bateria para transformá-los em um produto de massa, ainda é um mercado de nicho, mas é assim que muitos paradigmas foram quebrados. Valor: O quadro que o sr. traçou nesta entrevista foi de independência energética da América do Norte e demanda incerta por petróleo em termos globais. Isso não reduz o interesse de empresas americanas na exploração do pré-sal brasileiro? Moniz: Eu acredito que não. Por um fato: as "supermajors" ainda preferem produzir petróleo ao gás. E isso tem a ver com o que eu disse antes: o barril de óleo vale mais do que seis milhões de BTUs de gás. A realidade é que as "supermajors" têm acesso limitado às reservas mundiais de petróleo. As maiores reservas estão sob o controle de empresas estatais. A Petrobras pode ser uma companhia estatal, mas o Brasil tem um ambiente muito mais competitivo e dá boas-vindas aos investimentos estrangeiros. Uma grande petroleira não pode ir à Arábia Saudita e produzir petróleo. As empresas americanas tiveram sucesso no leilão de maio e certamente terão interesse nos contratos de partilha do pré-sal. Elas estão se acostumando a trabalhar em ambientes geológicos difíceis, como ocorre com o xisto e com o pré-sal. (Daniel Rittner)